Uma companhia seguradora,
ao comercializar seguros de automóveis, assume a responsabilidade por toda a
cadeia de prestação de serviços, mais ainda em razão de falha de seus próprios
empregados e prepostos.
A eleição de oficinas
credenciadas pela seguradora de automóveis é prática corriqueira no mercado,
mas que deve se adequar aos balizamentos impostos pelo direito do consumidor,
sob pena de restringir, de forma abusiva, o direito dos segurados.
Por estarem na condição de
fornecedora, as seguradoras têm a obrigação de prestar serviços adequados, bem
como fornecer informações verdadeiras ao consumidor, que muitas vezes é
induzido a erro, quando é levado a crer que somente teria o direito de consertar
seu veículo em "oficinas credenciadas", quando pagou por um contrato que dá
direitos mais amplos.
É é bastante comum a
ocorrência de situações em que o consumidor se depara com a recusa das
companhia seguradoras de cobrir integralmente o prejuízo sobre o bem segurado,
quando o consumidor opta por levar seu veículo uma oficina de sua confiança e
não uma oficina credenciada pela seguradora.
Essa recusa se dá, inclusive, de forma camuflada, quando lhes é exigida
diferença entre o valor do reparo feito na oficina credenciada e na oficina
comum.
A SUSEP - Superintendência
de Seguros Privados[1], autarquia que regula o setor, entende que "as oficinas
credenciadas constituem fator redutor no preço de peças e mão-de-obra,
reduzindo consequentemente o custo médio de seus sinistros, além de agilizarem
o processo de regulação/ajuste do orçamento e liberação do veículo. No entanto,
a seguradora não pode exigir que o segurado repare seu veículo em uma oficina
credenciada, podendo apenas estabelecer vantagens para tal".
No mesmo sentido, a Justiça do Estado do Rio de Janeiro
já decidiu:
VI Juizado Especial Cível: "Trata-se
de relação de consumo, uma vez que as partes autora e ré se enquadram,
respectivamente, nos conceitos de consumidor e fornecedor, trazidos pelo Código
de Defesa do Consumidor em seus arts. 2º e 3º. Presente, outrossim, o requisito
objetivo para a configuração da relação de consumo, qual seja, o fornecimento
de serviços por parte do réu, mediante pagamento, conforme o art. 3º, §2º,
também do Código de Defesa do Consumidor. Verifico que é desnecessária a
inversão do ônus da prova, uma vez que os fatos são incontroversos, cingindo-se
a questão à análise da legalidade da conduta da parte ré, que sustenta não ser
obrigada a responder por valores cobrados por oficinas contratadas pelos
segurados, quando extrapolem aqueles praticados por oficinas credenciadas.
Contudo, fato é que o contrato celebrado entre as partes não tem qualquer
ressalva nesse sentido: ao contrário, deixa claro que a obrigação do autor, no
caso de sinistro, é tão somente proceder ao pagamento de franquia, não havendo
qualquer cláusula que autorize que lhe seja cobrado valor excedente" (Processo
nº 0418834-61.2012.8.19.0001, j. 10 de março de 2013. Juíza Flávia Capanema)
Alegar, genericamente, que os preços praticados pela
oficina escolhida pelo consumidor são superiores à média de mercado é prática
abusiva, que dependeria de prova.
Na verdade, se a companhia apenas pode estabelecer
vantagens para premiar o consumidor que leva seu veículo a uma oficinal
credenciada, a prática contrária, de negar indenização no caso de conserto em
outra oficina ou de exigir o pagamento de diferença implica violação da própria
essência do contrato de seguro de dano, conforme reza o art. 779 do Código
Civil, in verbis:
"Art. 779. O risco do seguro compreenderá
todos os prejuízos resultantes ou consequentes, como sejam os estragos
ocasionados para evitar o sinistro, minorar o dano, ou salvar a coisa".
O STJ, no julgamento do REsp nº 735.750/SP, já decidiu
que cláusulas que tarifam o valor da indenização são abusivas porque reduzem os
efeitos jurídicos da cobertura do contrato de seguro ao estabelecer um valor
máximo para as despesas, tornando, assim, inócuo o próprio objeto do contrato.
A propósito:
STJ: "O cerne da questão cinge-se à
análise da existência de abuso na cláusula do contrato de plano de saúde que
prevê limite de valor para cobertura de tratamento médico-hospitalar. In casu,
a beneficiária de plano de saúde foi internada em hospital conveniado, em razão
de moléstia grave e permaneceu em UTI. Todavia, quando atingido o limite
financeiro (R$ 6.500,00) do custo de tratamento previsto no contrato celebrado
entre as partes, a recorrida (mantenedora do plano de saúde) negou-se a cobrir
as despesas médico-hospitalares excedentes. De fato, o sistema normativo vigente
permite às seguradoras fazer constar da apólice de plano de saúde privado
cláusulas limitativas de riscos adicionais relacionados com o objeto da
contratação, de modo a responder pelos riscos somente na extensão contratada.
No entanto, tais cláusulas limitativas não se confundem com as cláusulas que
visam afastar a responsabilidade da seguradora pelo próprio objeto nuclear da
contratação. Na espécie, a seguradora de plano de saúde assumiu o risco de
cobrir o tratamento da moléstia que acometeu a segurada. Porém, por meio de
cláusula limitativa e abusiva, reduziu os efeitos jurídicos dessa cobertura ao
estabelecer um valor máximo para as despesas hospitalares, tornando, assim,
inócuo o próprio objeto do contrato. É que tal cláusula não é meramente limitativa
de extensão de risco porque excludente da própria essência do risco assumido
(...)" (REsp 735.750-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/2/2012.)
No particular, a
seguradora faltou com o seu dever estipulado no art. 765 do Código Civil que
dispõe que "o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na
execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do
objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes".
Outrossim, o consumidor
não pode se ver obrigado a esperar mais tempo do que o contratualmente
estabelecido, em razão da falta de estoque de peças de reposição nas "oficinas
referenciadas". Neste caso, a seguradora responderá de forma solidária pela
demora ou ausência de peças de reposição. Nesse sentido, decidiu a Justiça do
Estado do Rio de Janeiro inúmeras vezes:
TJ/RJ: "(...)Não há dúvida, quanto à
demora excessiva no reparo do bem, especialmente considerando que incumbe ao
fornecedor manter estoque de peças de
reposição como dever anexo decorrente do princípio da boa fé. Não houve, in
casu, satisfação adequada do dever de informar e, se era tão difícil o reparo
do bem, deveria a seguradora desde o início ter declarado a perda total e pago
a indenização cabível, sub-rogando-se nos salvados para, então, consertá-los
com o tempo que achasse conveniente.
Caracterizado, desta forma, o defeito do serviço e a
responsabilidade da seguradora, impõe-se a obrigação de indenizar os danos
sofridos em virtude do grave inadimplemento.
(Apelação nº 0377624-69.2008.8.19.0001 - DES. MÁRCIA
FERREIRA ALVARENGA - Julgamento: 25/06/2012 - trecho do voto).
TJ/RJ: "Ação de reparação por danos
morais e materiais. Veículo roubado e recuperado sem condição de trafegar.
Prestação de serviço defeituoso e muito demorado em oficina credenciada pela
seguradora, causando inúmeros transtornos à consumidora. Sentença de
procedência. Inconformismo de ambas as partes. Entendimento desta Relatora
quanto ser a relação de consumo. Responde, a Ré, independentemente de culpa
pelos prejuízos. Demora excessiva no reparo do bem, especialmente considerando
incumbir ao fornecedor manter estoque de peças de reposição como dever anexo
decorrente do princípio da boa-fé. Descumprimento da oficina Ré do dever de
informar, pois reiteradamente limitou-se a justificar os adiamentos,
genericamente, sem apresentar qualquer comprovação, eventualmente existente,
quanto a dificuldade na obtenção de peças ou por vistorias exigidas pela
segurada com objetivo de autorizar os reparos. Demora de 121 dias corridos, por
si só, já causa transtornos, mas os fatos tomaram contornos kafkianos, com
desrespeito deflagrado por preposto da Ré. Caracterizado, o defeito do serviço
e a responsabilidade da Ré, impõe-se a obrigação de indenizar os danos sofridos
em virtude do grave inadimplemento. Mesmo após a excessiva demora foram
detectados inúmeros defeitos do serviço da Ré, apontados na vistoria de qualidade
feita pela seguradora, culminando que os reparos fossem entregues à outra
oficina credenciada. Valor fixado dos danos extrapatrimoniais fixados em R$
10.000,00 dez mil reais encontra-se adequado, razão pela qual deve mantido,
pois proporcional à extensão do dano e adequado aos parâmetros desta E. Corte.
Precedente TJERJ. NEGATIVA DE SEGUIMENTO A AMBOS OS RECURSOS, na forma do
Artigo 557, caput, do CPC. (Apelação nº 0046469-78.2006.8.19.0038. Des.
CONCEICAO MOUSNIER - Julgamento: 30/07/2012).
Trata-se, a toda
evidência, de práticas abusivas, que geralmente estão amparadas em cláusulas
insertas em contratos de adesão, que são nulas, por desrespeitar o sistema de
defesa do consumidor, por força do que dispõe o art. 51, I do CDC.
Com efeito, o Código de
Defesa do Consumidor qualifica como impróprio o serviço (art. 20 § 2º do CDC)
que se mostra inadequado ao fim que razoavelmente dele se espera. Essa
razoabilidade está intimamente ligada ao direito de informação do consumidor
(art. 6º, III do CDC), que encontra, nos serviços massificados, o atendimento
nos call centers seu principal veículo de comunicação com a empresa prestadora
dos serviços. Diz a lei:
"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(.)
III - a informação adequada e clara
sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem;
(.)
Art.
20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem
impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles
decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem
publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I
- a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;
II
- a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem
prejuízo de eventuais perdas e danos;
III
- o abatimento proporcional do preço.
(.)
§ 2° São impróprios os
serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se
esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de
prestabilidade
(...)
Art. 51. São nulas de
pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento
de produtos e serviços que:
I - impossibilitem,
exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer
natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de
direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa
jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
(.)
XV - estejam em desacordo
com o sistema de proteção ao consumidor
A correta prestação de
informações, além de direito básico do consumidor, demonstra a lealdade
inerente à boa-fé objetiva e constitui ponto de partida para a perfeita
coincidência entre o serviço oferecido e o efetivamente prestado. De acordo com
Cláudia Lima Marques, "(...) não é unicamente no contrato e nas suas cláusulas
que se deve verificar se houve uma adequada e eficaz prestação do serviço. A
noção do serviço inadequado é objetivada, até porque depender do teor do
contrato é colocar tudo nas mãos e no controle do fornecedor, o qual,
invariavelmente, utiliza-se de contratos de adesão e redige as cláusulas
considerando unicamente os próprios interesses econômicos" (MARQUES, Cláudia
Lima et alli. Manual de direito do consumidor. 2ª ed., São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 2009, p. 158).
Em
resumo, o consumidor não é obrigado a reparar seu veículo apenas em oficinas
credenciadas e também não deve responder por quaisquer valores cobrados pelas
oficinas quando extrapolem aqueles praticados pelas oficinas credenciadas da
seguradora. De outro lado, é igualmente abusivo tarifar, no contrato, um valor
fixo da indenização que é bastante inferior aos preços praticados no mercado.
Fonte - RICARDO MARQUES DE ALMEIDA: Procurador Federalhttp://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-direito-do-consumidor-de-receber-a-indenizacao-integral-pelos-consertos-necessarios-em-seu-automovel-indepen,45926.html - [1] http://www2.susep.gov.br/menuatendimento/info_auto.asp